30.3.09

“Certa ideia”

As formas não são tudo. Apesar de sua simetria, toda forma clama por uma substância, por uma essência não visível, por uma, digamos, ideia. Aliás, Rafael Sanzio (1483-1520), artista italiano do período renascentista, já dizia que pintava a partir de “uma certa ideia”. A beleza é, neste sentido, um ideal; ela habita a imaginação. De modo que ao pintar um nariz, pintava-se um nariz que não se podia encontrar na face de ninguém, pois este nariz era dependente de uma ideia específica.

A pintura torna-se mais do que tinta e pincel. Está para além da própria técnica artística. Obviamente, isso não exclui o rigor do trabalho artístico. Por causa desta “certa ideia”, a obra de arte só pode nascer de uma profunda reflexão, calculada de maneira minuciosa, para que seja alcançado o exato sentido artístico.

Por outro lado, nosso mundo, quer dizer, este mundo em que estamos hoje, é um mundo de formas. Vivemos encantados com formas retilíneas e curvilíneas que se apresentam diariamente em todos os lugares, expondo-nos a um padrão de beleza formal. A geometria dominou a arte. Não se fala em essência, porque tudo que é abstrato faz parte de um mundo nada interessante. Parece que não passou pela cabeça de ninguém ainda que a linha reta é simplesmente algo impossível de se obter. Tudo o que temos é uma ilusão de que há uma reta, mas a reta jamais será reta por mais perfeita que se pareça ser sua trajetória linear.

Ilusão? Ou uma “outra ideia” nada “certa”?


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18.3.09

Uma breve digressão sobre condição humana a partir da poesia

Não é fácil pegar a estrada. O poeta Robert Frost, em “The road not taken” (“A estrada não percorrida”), já nos lembrava que não se pode viajar em dois caminhos. Ora, não é a vida uma jornada? Tomamos decisões e fazemos escolhas. Examinamos dois caminhos para decidir qual deles percorrer. Viver é, portanto, pagar o preço de seguir um caminho, como lemos nos versos frostianos:

Two roads diverged in a wood, and I—
(Dois caminhos divergiam num bosque, e eu—)
I took the one less traveled by,
(Eu tomei o menos viajado,)
And that has made all the difference.
(E isso tem feito toda a diferença.)

Contudo, a diferença sobre a qual o famoso poeta americano está falando não é possível em um mundo cujo fim é — ou será — “não com um estrondo (“bang”), mas com uma choradeira”. Foi outro grande poeta, T. S. Eliot, quem nos mostrou que não podemos completar a Oração do Pai Nosso. Aliás, se tomamos um caminho na vida, tomamos como “pessoas ocas” (“hollow men”). Nada há dentro de nós além de “palha”. Somos fragmentados como “vidros quebrados” debaixo de “pés de ratos”. Nossa força está “paralisada”; nossos gestos, “sem movimento”; nossas vozes, “secas”. Há esperança para seres tão vazios? Talvez qualquer resposta para esta pergunta soe “quieta e sem sentido”. De fato, quando nossas orações ficam cada vez mais quebradas, nosso vazio dificilmente é preenchido por uma força transcendental. A esperança se esvai diante de tal fraqueza. Nossa condição humana é “oca”.

Mas o vazio não deveria nos assustar. “Desert places” (“Lugares desertos”), um outro poema de Frost, nos traz a lembrança de que nossos espaços vazios são tão naturais como a “neve”. A propósito, a brancura da neve está ligada à solidão, pois ambas são desertas. Logo, é da natureza o estar só, inclusive da natureza humana.

They cannot scare me with their empty spaces
(Não podem me assustar com seus espaços vazios)
Between stars—on stars where no human race is.
(Entre as estrelas—nas estrelas onde nenhuma raça humana está.)
I have it in me so much nearer home
(Tenho isso em mim, tão perto de casa)
To scare myself with my own desert places.
(Para assustar a mim mesmo com meus próprios lugares desertos.)

“Tenha cuidado”, talvez diria um outro poeta. O que está perto não é palpável, como lemos nos versos de E.E. Cummings:

I cannot touch because they are too near.
(Não posso tocar porque estão muito perto.)

Estas palavras paradoxais nos ensinam que a vida pode ser “algum lugar para onde nunca viajei” (“somewhere i have never travelled”, é o título do poema). No entanto, isso não é motivo de tristeza, mas de alegria. “Alegremente para além de qualquer experiência”, Cummings explica. É claro que o poeta está falando de amor aqui, mas o que é o amor para uma pessoa que pronuncia os seguintes versos?:

my life will shut very beautifully, suddenly,
(minha vida se fechará de modo muito belo, repentino,)
as when the heart of this flower imagines
(como quando o coração desta flor imagina)
the snow carefully everywhere descending;
(a neve caindo com cuidado em cada lugar;)

Creio que a musa de Cummings é a própria vida, porque, como ele conclui, “ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas”. Fecha-se o poema com esta frase, que revela a fragilidade da amada, assim como a vida. É frágil, porque dela não podemos fugir. Esta é a nossa condição.

Estamos condenados à vida, cujos problemas e questões são intrínsecos a todos nós. O papel da poesia é nos mostrar o que não queremos ver. Que há uma estrada a se pegar, apesar do preço a pagar. Que não passamos de pessoas ocas... e também fracas. Que tal como a neve está para a branquidão assim estamos para a solidão. Que nada se pode tocar por muito perto de tudo estar. Eis a nossa condição.


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8.3.09

A arte tem dessas coisas

Fernando Pessoa diz que os artistas são “homens [e mulheres] de intelecto e sentimento”. São gênios. Diferente do talento, que é a inteligência concreta tornada abstrata, o gênio é justamente a inteligência abstrata e individualizada, é “a corporização concreta, temperamental e (...) de uma faculdade abstrata”. É, pois, alguém que tem intelecto e sensibilidade sem distingui-los. Pessoa cita o poeta William Wordsworth como exemplo de puro gênio, “sem aliança com o talento ou o espírito”, ressalta.

Como o que interessa são os detalhes, as sensações mínimas, passei, após ouvir Pessoa, a enxergar valor nas coisas inúteis e fúteis da vida, atento a evitar se deixar levar por aquilo que dizem ser vida. Wordsworth é um gênio por causa disso, ele estava no romantismo, mas não se deixou ser cegamente influenciado por este movimento. Aliás, isso é endêmico entre os românticos. Como constata Pessoa, o romantismo nasceu mórbido e esfacelou-se. “Desintegrou-se nos seus três elementos componentes, e cada um destes passou a ter uma vida própria, a formar corrente separada das outras.” Por isso que o “romantismo, nos seus dois processos verdadeiramente inovadores, não fez mais que reeditar o helenismo, contra a fórmula clássica, mais latina que grega”, sendo, portanto, “o continuador daquilo que a Renascença trouxe de novo — mas também de helênico — à literatura da Europa”. Foi, desde o início, um fenômeno de decadência. A arte tem dessas coisas.


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1.3.09

Sensação de verdade

O fato de a verdade ser relativa não diminui seu valor, porque nós temos a ideia de verdade. E isso é importante, já que essa “ideia” é uma sensação. Eis o segredo da vida! Viver é sentir! O sentido da verdade corresponde ao que eu sinto. Por isso, não existe verdade, existe uma sensação de verdade. O mesmo se pode arriscar dizer: não existe vida, existe uma sensação de vida. Sem querer dar crédito a Descartes: “Sinto, logo existo”. Dói aos tímpanos da tradição racionalista ouvir coisa assim.

Afinal, a tradição racionalista prioriza a razão (“logos”) em detrimento da paixão (“pathos”). Não é por acaso que, volta e meia, vem à baila o velho hábito de manter o controle através da razão. Já se esqueceu, infelizmente, que o próprio movimento filosófico que enfatizava a explicação racional da vida recebeu apelidos metafóricos bastante distantes de uma racionalidade insensível, como “Luzes” e “Ilustração”. Ambas expressões guardam em seu sentido, momentos memoráveis de quando a humanidade vivia a aurora de um novo tempo, onde o passado foi reconhecido como “Trevas” diante do lúmen de novas experiências, que embora nascidas no crepúsculo dos séculos escuros, davam a sensação da iminência de uma nova era. A luz era o sol que dispersava a neblina da ignorância. Pura sensação de verdade! Rejeitaram o “a priori” do establishment em prol do sentimento de viver diferentemente. Apostaram na sensação. Afinal, a razão foi, antes de tudo, uma alienação, uma ilustração, uma luz, um sentimento. Era, pois, um “a posteriori”, não um “a priori”. Já nasceu com uma intenção: desejar um requiescat in pace para o velho mundo, o velho sentimento. A velha sensação de verdade.

Ontem, hoje e sempre. Tudo foi, tudo é, tudo será sensação.


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