29.12.07

Pós-Natal

O último pedaço de panetone é compartilhado com as crianças। Aquela cesta fez milagre. Foi um presente da patroa, que, após a faxina, resolveu fazer um agrado para a pobre mãe. Pouca coisa havia ali. Só o suficiente para comer diferente no Natal. A caixa de chocolate garantiu a breve festa da criançada. O peru assado trouxe um gosto diferente do frango de domingo. As nozes e as frutas exóticas, embora não parecessem interessantes ao paladar dos filhos, serviram de petisco na hora do drinque. Satisfeito, o pai já tinha se esquecido do gosto do vinho. (Além da cachaça de cada dia depois do trabalho, ele, às vezes, experimentava uma dose de catuaba no boteco.) Sua esposa preferiu refrigerante, mas não resistiu a uma taça. O bastante para dizer “Que delícia!”. De relance, lembrou das canções ouvidas horas atrás na igreja. “Natal, Natal, é-nos nascido o rei divinal!”, cantou na memória, arremedando um coro. Não lia muito a Bíblia, mas sabia que Jesus nasceu na manjedoura, ao lado de bois e vacas, e que três magos o visitaram, seguindo uma estrela. Do jeito que estava no presépio. “Mamãe, Jesus era pobre?”, pergunta-lhe seu filho mais velho, de doze anos. Insegura, a resposta foi afirmativa. “Passou da hora de dormir. Pra cama!”, decreta a genitora. Naquela noite, tudo foi diferente. Mas, agora, era aquele último pedaço de panetone que tanto incomodava. À seguinte advertência materna, as crianças resolvem obedecer: “Coma logo, porque amanhã será pão dormido!”

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19.12.07

A origem da miséria

Conta-se que há muitos anos atrás morava em terras lusitanas uma senhora chamada Miséria. Ela era muito pobre e tinha apenas alguns pães dormidos para se alimentar. Tudo seria diferente caso ela pudesse desfrutar de um tesouro que tinha em frente à sua casa. Aquela figueira era seu maior objeto de desejo. Aguardava ansiosa para apanhar pelo menos um de seus frutos. Tamanha era a frustração quando via os meninos do bairro se deliciando daqueles seus figos. Jamais conseguiu a graça de poder comer um sequer.

Certo dia passou pela porta de sua casa um velho senhor fatigado de uma longa viagem, a quem recebeu com bastante esmero. (Dona Miséria era sozinha e sentia falta de alguém para conversar. Por causa de seu jeito amuado, seus vizinhos pouco lhe davam atenção. Mas ela não tinha raiva de ninguém, exceto um leve ressentimento com a meninada do bairro que insistia em não saciar sua vontade por aquela suculenta e carnuda fruta.) Com o viajante ela dividiu seus pães. Nunca se sentiu tão bem como agora. Ele era como ela, faminto e sem ninguém. Chegou o momento de partir. Ele a surpreende dizendo: “Pede o que quiseres e terás”. Ela não titubeia: “Quero que qualquer pessoa que subir na minha figueira não consiga descer sem a minha ordem”. Sem entender bem, o andarilho lhe concede essa petição, despedindo-se de sua anfitriã. (Desnecessário dizer que, à primeira chance que teve, Dona Miséria acabou com a festa dos garotos, admoestando-os a não subirem mais em sua árvore, porque jamais pisariam no chão novamente.)

Numa fria noite, bate-lhe na porta uma senhora toda vestida de preto cuja face era inidentificável. “Quem és tu?”, pergunta assustada após abrir a porta. Sem nada ouvir por alguns segundos, sua perna bambeava e sua respiração falhava. “A Morte”, respondeu a sinistra visitante. Feito o sinal da cruz três vezes, Dona Miséria, implora: “Deixa-me viver mais um ano, faz favor, ou um mês, ou um dia, pois?”. A Morte reage em brasileiro: “Neca!”. Dona Miséria, então, suplica seu direito a um último pedido: “Dona Morte, antes de morrer, queria tanto saciar o gosto do rebento da planta cujas folhas Adão vestiu sua nudez. Tenho sido impedida, por inúmeras circunstâncias de experimentar esses figos à frente de minha casa. Colherias um para mim?”. Como até a Morte tem seu lado bondoso, ela subiu na árvore, porém, como supõem, não desceu. “De maneira alguma descerás”, declara veementemente Dona Miséria.

Passados muitos dias, a Terra se enchera de gente. Ninguém morria. O caos era geral. A fome se agravara. A Morte chama sua carrasca à responsabilidade: “Se eu não descer, o mundo vai implodir; preciso fazer meu trabalho”. Muito experta, Dona Miséria concorda, desde que jamais receba essa incômoda visita em sua casa novamente. Sem escolha, a Morte aceita. E é por isso que a miséria anda solta até hoje.

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12.12.07

O neoliberalismo e a religião

O neoliberalismo faz com que as pessoas acreditem na lógica capitalista como a solução para seus problemas. Afinal, quem hoje não quer prosperar na vida? O problema está quando a religião se alinha completamente com este modelo econômico, promovendo apelos emocionais ao consumo privado de bens religiosos e promessas mágicas de melhoria na qualidade de vida material. Além disso, o crescente profissionalismo pastoral reflete um estilo de igreja voltada para o crescimento numérico, transformando o líder espiritual em um gerente que vive de resultados. A igreja acaba perdendo sua dimensão comunitária, ao enfatizar a importância de vivência da fé de maneira individualista, onde o fiel é intimado a adotar modos de vida padronizados — sobretudo, no campo moral —, sendo incentivado também a fazer uso de produtos de um tipo de mercado — no caso protestante, chamam-no de “gospel”.

A famigerada teologia da prosperidade tem relação direta com a lógica do capitalismo. Baseada na idéia de que Deus quer que todas as pessoas desfrutem de um estado próspero, a teologia da prosperidade prega que se os crentes tiverem fé suficiente para pedir aquilo que querem obter, demonstrando essa fé com doações generosas, eles receberão em abundância. Esse discurso se torna uma alternativa para muitos homens e mulheres que, embora necessitados, estão dispostos a apostarem em meio a várias opções ofertadas pelo neoliberalismo. Ou seja, fazer uma fezinha na loteria é mais arriscado do que depositar todas as fichas no gazofilácio divinizado.

Isso é endêmico nas religiões — cada um que faça a comparação com sua própria instituição, eu fiz dentro da minha; se não gostar dos símbolos religiosos, observe, por exemplo, os shoppings, são a mesma coisa, só que templos do capital (neste caso, até mais eficientes). Soa atraente aos seres humanos a idéia de acreditar em ajuda do além para a solução de seus problemas. É uma espécie de bengala, como apostar na Mega Sena. Melhor ficar rico no estalar dos dedos do que trabalhar dignamente para se sustentar — não para enriquecer —, pois o sonho de um caminho mais fácil para a vida é arquetípico e todos querem trilhá-lo. Às instituições religiosas resta a tentação de cobrar o pedágio para este que é o paraíso perdido dos humanos. Lá nas terras da mãe África, de onde todos saímos, ficou nossa mais primeva casa. Quanta saudade! Libertar disso parece tão difícil como perder as bengalas. Não aprendemos ainda que o caminho de volta é assaz difícil e quase impossível de se fazer. Nesse impasse, melhor insistir na possibilidade de um atalho vestido de liberdade, mas com corpo de ilusão. Fechar os olhos para a realidade e fingir que nada está acontecendo. Assim, o neoliberalismo se sustenta na esteira da religião, enquanto a humanidade vai por água abaixo.

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6.12.07

Solo Sagrado

Há um pedaço do chão da segunda maior cidade do mundo que está repleto de sacralidade. Construído em uma área outrora devastada, o Solo Sagrado de Guarapiranga é um dos lugares mais inusitados da grande São Paulo. Muito verde cercado por água, a sensação é de que se está num paraíso. Aliás, a missão dada por Deus aos seres humanos é de “construir o Reino dos Céus na Terra”, já dizia Meishu-Sama, talvez o fundador de religião mais ecológico de todos os tempos.

O lugar é sagrado porque reverencia o cuidado com a primeira revelação do Criador para fora de si, a natureza. Busca-se incentivar o uso de alimentos sem agrotóxicos, a não-agressão ao meio ambiente, bem como a reposição e a preservação de áreas verdes. Ecologia? Mais que isso. Fazer muito com pouco. O simples fato de existir um reduto de resistência à crescente poluição da metrópole já é motivo para se identificar uma das mais sagradas e necessárias mensagens inter-religiosas: mais ações que discursos.

Essa práxis simples, essencial e admirável é recheada por uma espiritualidade de reverência aos que já não estão mais entre nós. Aos antepassados não é relegada a amnésia dos vivos, pelo contrário, eles são lembrados o tempo todo. A Deus está dedicada uma grande torre, que, a propósito, está a apenas um metro do maior prédio da capital paulista, mas não é ali que ele mora. Ele está em todos os lugares, acreditam. O altar é mais por causa das pessoas do que dele.

Eis o segredo: o que aquela terra tem de sagrada é mais em virtude de quem cultua do que de quem é cultuado. Em outras palavras, solos sagrados fazem muito bem a homens e mulheres, principalmente quando lá se tem muito verde, muita água e muita gente com a consciência de que se nós não cuidarmos da natureza não vai adiantar sonhar com paraíso para os nossos netos e netas.

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3.12.07

Uma obviedade

Os fins nem sempre justificam os meios.

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