A origem da miséria
Certo dia passou pela porta de sua casa um velho senhor fatigado de uma longa viagem, a quem recebeu com bastante esmero. (Dona Miséria era sozinha e sentia falta de alguém para conversar. Por causa de seu jeito amuado, seus vizinhos pouco lhe davam atenção. Mas ela não tinha raiva de ninguém, exceto um leve ressentimento com a meninada do bairro que insistia em não saciar sua vontade por aquela suculenta e carnuda fruta.) Com o viajante ela dividiu seus pães. Nunca se sentiu tão bem como agora. Ele era como ela, faminto e sem ninguém. Chegou o momento de partir. Ele a surpreende dizendo: “Pede o que quiseres e terás”. Ela não titubeia: “Quero que qualquer pessoa que subir na minha figueira não consiga descer sem a minha ordem”. Sem entender bem, o andarilho lhe concede essa petição, despedindo-se de sua anfitriã. (Desnecessário dizer que, à primeira chance que teve, Dona Miséria acabou com a festa dos garotos, admoestando-os a não subirem mais em sua árvore, porque jamais pisariam no chão novamente.)
Numa fria noite, bate-lhe na porta uma senhora toda vestida de preto cuja face era inidentificável. “Quem és tu?”, pergunta assustada após abrir a porta. Sem nada ouvir por alguns segundos, sua perna bambeava e sua respiração falhava. “A Morte”, respondeu a sinistra visitante. Feito o sinal da cruz três vezes, Dona Miséria, implora: “Deixa-me viver mais um ano, faz favor, ou um mês, ou um dia, pois?”. A Morte reage em brasileiro: “Neca!”. Dona Miséria, então, suplica seu direito a um último pedido: “Dona Morte, antes de morrer, queria tanto saciar o gosto do rebento da planta cujas folhas Adão vestiu sua nudez. Tenho sido impedida, por inúmeras circunstâncias de experimentar esses figos à frente de minha casa. Colherias um para mim?”. Como até a Morte tem seu lado bondoso, ela subiu na árvore, porém, como supõem, não desceu. “De maneira alguma descerás”, declara veementemente Dona Miséria.
Passados muitos dias, a Terra se enchera de gente. Ninguém morria. O caos era geral. A fome se agravara. A Morte chama sua carrasca à responsabilidade: “Se eu não descer, o mundo vai implodir; preciso fazer meu trabalho”. Muito experta, Dona Miséria concorda, desde que jamais receba essa incômoda visita em sua casa novamente. Sem escolha, a Morte aceita. E é por isso que a miséria anda solta até hoje.
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Meu Camarada,
Que mito envolvente! Lembrou-me a escrita do clássico Grimm e de seus imortalizados contos.
Seguramente essa é a maneira mais rica e deliciosa de compartihar idéias: e quantas idéias há aqui! O felizardo leitor é que tire suas próprias conclusões!
A imortalidade da Miséria, essa frágil senhora, chega a ser um enigma em um mundo que produz o suficiente para alimentar a boca de todos os seus filhos. Um enigma que você desvendou com esse mito que acabo de integrar a minha Mitologia Pessoal.
Um mito, aliás, bem tupiniquim: a Miséria é lusitana, os meninos da figueira são ingleses e a Morte é uma brasileira que jamais conseguiu explorar toda sua potencialidade. Não me leve a sério, é apenas minha interpretação pessoal.
Abraços