19.12.07

A origem da miséria

Conta-se que há muitos anos atrás morava em terras lusitanas uma senhora chamada Miséria. Ela era muito pobre e tinha apenas alguns pães dormidos para se alimentar. Tudo seria diferente caso ela pudesse desfrutar de um tesouro que tinha em frente à sua casa. Aquela figueira era seu maior objeto de desejo. Aguardava ansiosa para apanhar pelo menos um de seus frutos. Tamanha era a frustração quando via os meninos do bairro se deliciando daqueles seus figos. Jamais conseguiu a graça de poder comer um sequer.

Certo dia passou pela porta de sua casa um velho senhor fatigado de uma longa viagem, a quem recebeu com bastante esmero. (Dona Miséria era sozinha e sentia falta de alguém para conversar. Por causa de seu jeito amuado, seus vizinhos pouco lhe davam atenção. Mas ela não tinha raiva de ninguém, exceto um leve ressentimento com a meninada do bairro que insistia em não saciar sua vontade por aquela suculenta e carnuda fruta.) Com o viajante ela dividiu seus pães. Nunca se sentiu tão bem como agora. Ele era como ela, faminto e sem ninguém. Chegou o momento de partir. Ele a surpreende dizendo: “Pede o que quiseres e terás”. Ela não titubeia: “Quero que qualquer pessoa que subir na minha figueira não consiga descer sem a minha ordem”. Sem entender bem, o andarilho lhe concede essa petição, despedindo-se de sua anfitriã. (Desnecessário dizer que, à primeira chance que teve, Dona Miséria acabou com a festa dos garotos, admoestando-os a não subirem mais em sua árvore, porque jamais pisariam no chão novamente.)

Numa fria noite, bate-lhe na porta uma senhora toda vestida de preto cuja face era inidentificável. “Quem és tu?”, pergunta assustada após abrir a porta. Sem nada ouvir por alguns segundos, sua perna bambeava e sua respiração falhava. “A Morte”, respondeu a sinistra visitante. Feito o sinal da cruz três vezes, Dona Miséria, implora: “Deixa-me viver mais um ano, faz favor, ou um mês, ou um dia, pois?”. A Morte reage em brasileiro: “Neca!”. Dona Miséria, então, suplica seu direito a um último pedido: “Dona Morte, antes de morrer, queria tanto saciar o gosto do rebento da planta cujas folhas Adão vestiu sua nudez. Tenho sido impedida, por inúmeras circunstâncias de experimentar esses figos à frente de minha casa. Colherias um para mim?”. Como até a Morte tem seu lado bondoso, ela subiu na árvore, porém, como supõem, não desceu. “De maneira alguma descerás”, declara veementemente Dona Miséria.

Passados muitos dias, a Terra se enchera de gente. Ninguém morria. O caos era geral. A fome se agravara. A Morte chama sua carrasca à responsabilidade: “Se eu não descer, o mundo vai implodir; preciso fazer meu trabalho”. Muito experta, Dona Miséria concorda, desde que jamais receba essa incômoda visita em sua casa novamente. Sem escolha, a Morte aceita. E é por isso que a miséria anda solta até hoje.

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11 Comentário(s):

  • At 19 de dezembro de 2007 às 16:40, Blogger Alysson Amorim said…

    Meu Camarada,

    Que mito envolvente! Lembrou-me a escrita do clássico Grimm e de seus imortalizados contos.

    Seguramente essa é a maneira mais rica e deliciosa de compartihar idéias: e quantas idéias há aqui! O felizardo leitor é que tire suas próprias conclusões!

    A imortalidade da Miséria, essa frágil senhora, chega a ser um enigma em um mundo que produz o suficiente para alimentar a boca de todos os seus filhos. Um enigma que você desvendou com esse mito que acabo de integrar a minha Mitologia Pessoal.

    Um mito, aliás, bem tupiniquim: a Miséria é lusitana, os meninos da figueira são ingleses e a Morte é uma brasileira que jamais conseguiu explorar toda sua potencialidade. Não me leve a sério, é apenas minha interpretação pessoal.

    Abraços

     
  • At 20 de dezembro de 2007 às 08:23, Blogger Adriano Estevam said…

    Felipe,

    Um texto fantástico. Engraçado e cheio de profundas lições. Vou incluí-lo na minha lista de melhores deste ano. Abraços,

     
  • At 20 de dezembro de 2007 às 08:59, Blogger Deepak Gopi said…

    Hola amigo

    Good day :):)

     
  • At 21 de dezembro de 2007 às 10:58, Anonymous Anônimo said…

    Felipe,

    que linda história!

    Envolvente, do princípio ao fim.

    Um alegoria que me comove.

    Alguém disse (não me lembro bem quem, parece que um economista não-marxista) que "Deus deve gostar muito da Miséria. Por isso a distribui tanto, e em tão grande quantidade."


    /// Abraços, flores, estrelas..

     
  • At 22 de dezembro de 2007 às 18:48, Anonymous Anônimo said…

    Relendo.
    Deliciosamente.

     
  • At 23 de dezembro de 2007 às 22:01, Blogger Elsa Sequeira said…

    Felipinhooooo!
    Adorei ler!!!

    Faz tempo que não aparecia, mas hoje tive que deixar tudo e vir até cá! Vimn trazer-te todo o meu carinho e amor envoltos em paz!
    Desejo-te um Natal maravilhoso junto de todos os teus familiares e amigos!!!
    Beijinhos!!!

     
  • At 24 de dezembro de 2007 às 16:41, Blogger Marlene Maravilha said…

    Meu grande e querido irmão!
    Prometo voltar e ler o teu post esta semana, mas neste momento, consegui postar alguma coisa no meu blog e passar para deixar-te UM FELIZ NATAL CHEIO DA PAZ E AMOR DE JESUS PARA TI E TUA FAMÍLIA!

    beijos

     
  • At 25 de dezembro de 2007 às 13:43, Blogger Alysson Amorim said…

    Meu Amigo,

    Um Natal cheio de Vida pra você e sua família.

    Caloroso abraço.

     
  • At 29 de dezembro de 2007 às 22:27, Blogger Janete Cardoso said…

    Meu amigo talentoso!!!!
    Vim te trazer um beijo! :)

     
  • At 21 de janeiro de 2008 às 22:31, Blogger Terezinha Bordignon said…

    Este conto é significativo. A miséria conseguiu enganar até a morte, é perita em fazer as pessoas sofrerem e está no mundo inteiro. Ninguém pode afirmar que está livre dela: A qualquer momento ela pode bater à porta. A vantagem é que, ao contrário da morte, pode ser vencida.


    Gostei de seus blogs.
    Obrigada por sua visita.

     
  • At 24 de novembro de 2011 às 11:56, Anonymous Rosaine said…

    Há anos ouvi esta historia e queria revê-la para aplicar como reflexão em algumas oportunidades. Viva o "Google"!
    Quanto a um certo comentario devo dizer que Deus não "distribui miseria", o homem é que a cava com suas proprias mãos. Ao contrario, uma natureza rica e farta, é presente de Suas mãos. A exemplo, a luta dos ecologistas para nos impedir impiedade para com essa natureza.

     

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