30.7.07

O fim de um mundo

Os olhos das pessoas que há alguns dias atrás estavam dentro de uma aeronave partindo de Porto Alegre para São Paulo se fecharam para sempre. Não haverá mais dia, nem noite, para aqueles homens e aquelas mulheres que tiveram um fim trágico, jamais esperado por algum de nós. O mundo do nascer e do pôr do sol já não há para eles e elas. Findou-se para nunca mais voltar.

Como é possível dar adeus a um mundo sem nunca ter pedido para sair dele? Aliás, ninguém sequer pediu para entrar nele. Quando assustamos, nos percebemos aqui, do jeito que somos, lutando para entender o porquê de um dia termos aberto os olhos, forçados por uma luz. Naquele instante, onde, pela primeira vez, as cordas vocais trabalharam, ocorreu também o fim de um mundo.

Para trás, no entanto, não ficaram família, amigos, realizações, decepções, mas uma eterna nostalgia de um indelével mundo, do qual ninguém se lembra, porém tem saudade sem saber que se tem. Lá, coberto pelo líquido amniótico, esteve cada um de nós, dentro do prazer de viver sem ter consciência de que se vive. Ficou, no útero, aquilo que acreditamos ser a razão de nossa existência: a resposta para a pergunta “de onde eu vim?”.

Frutos do prazer, viemos de um mundo perdido, um paraíso que já não existe mais, um Éden. No nascedouro, éramos sem saber que éramos. Entretanto, outro mundo surgiu quando nossos olhos foram abertos, pois passamos a viver conscientes da vida. Que saudade daquele mundo! Afinal, neste mundo atual, a gente não só sabe que está vivendo, mas sabe também que dele um dia sairá.

Quando isso acontecer, haverá choro por parte dos que aqui ficarem. Como se sabe, dos olhos não se pode esperar outra coisa além de lágrimas quando se perde alguém. Não me esqueço de que, quando criança, orava no silêncio de mim mesmo: “Papai do céu, não deixe que ninguém morra!”

Morrer e nascer são sinônimos de o fim de um mundo. Ao sair do ventre de nossas mães, despedimo-nos de um mundo não retornável. Semelhantemente, ao pararmos de respirar, jazerá um mundo ao qual será impossível voltar. Todos morreremos, tal como todos, um dia, nascemos. Eu, porém, na minha infância, não entendia que uma coisa depende da outra: só se nasce morrendo, porque morre um mundo, nasce outro. Já dizia Eclesiastes que “felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem”, mas mais feliz é “aquele que ainda não nasceu” (4,2-3). Mesmo assim, coisa muito difícil é aceitar que, quando um mundo chega ao fim, abrem-se os olhos, no nascimento, e fecham-nos, na morte!

Em memória das vítimas do vôo JJ 3054 que se acidentou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, há 13 dias atrás.

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24.7.07

Made in Brasil [sic]

O advento da modernidade na quinta maior extensão de terra do planeta é um processo contraditório. Se, por um lado, há interesse público em buscar, a qualquer custo, perseguir a ideologia do desenvolvimento, por outro, vez ou outra, surgem ranços de costumes demasiadamente arraigados que caminham contra o famigerado progresso. Ocorre, pois, uma relação estreita entre o tradicional e o não-tradicional na história do Brasil.

Tal hibridismo é observável em diversas esferas da sociedade brasileira. A começar da mal-afamada política, onde se ceva o pretensioso discurso desenvolvimentista — que já é coisa obsoleta falar em desenvolvimento num país de tanta desigualdade social —, mas também é onde se dão as bem-conhecidas falcatruas, levando o eleitorado tupiniquim a adotar como princípio político o “rouba, mas faz”. A religião, que sempre tem sido um nascedouro de inovadores movimentos sociais em prol da igualdade entre as pessoas, é a mesma que troca sua voz profética pelas tentações dos tradicionalismos, populismos, curandeirismos, fanatismos, fundamentalismos, emocionalismos, escapismos, proselitismos, e outros ismos mais. A imprensa também tem sua contribuição neste retrocesso, porque, malgrado conserve o espírito satírico de denunciar as injustiças sociais, não sai do oportunista posto de se achar a salvadora da pátria por ficar “cozinhando” um assunto dias e mais dias, enterrando e ressuscitando-o conforme seus interesses de cor marrom. A universidade, guardiã do pensamento crítico-vanguardista, despreza a possibilidade de abrir suas portas para os menos favorecidos, alegando perda de qualidade, como se o capital cultural das elites tivesse contribuído com alguma coisa melhor para o país senão aumentar o abismo entre ricos e pobres. O povo também não é inocente nem um pouco, porque sonha em transformar o país em primeiro mundo, mas adora tirar proveito dos furos da máquina corrupta, querendo sonegar impostos, descumprir regras e ainda alimenta a utopia de que um dia virá um messias para transformar o Brasil na maior potência mundial.

O fato é que queremos entrar e sair da modernidade arbitrariamente. Este paradoxal movimento é o que faz a nação ser o que é, parafraseando o Roberto da Matta. Incerteza é palavra-chave no inconsciente coletivo nacional, pois entra e sai governo, a sensação é de que fica tudo do mesmo jeito, embora haja algum ensaio de mudança. Afinal, modernidade à brasileira não pode incorporar o “z” não-tradicional no lugar do “s” tradicional, em que pese termos orgulho de dizer “Made in” ao invés de “Feito no”. Portanto, se virem Made in Brasil — com “s” mesmo — por aí, não estranhem, porque é a evidência do nosso hibridismo, tão moderno e tão pré-moderno ao mesmo tempo, é o pastiche e a bricolagem que, juntos, se confluem... Acreditem: ainda há quem fale em pós-modernidade nestas terras!

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7.7.07

Um livro chamado Frankenstein


Frankenstein, obra-prima da escritora inglesa Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851), é um clássico daquela literatura que busca dialogar com a ciência, porque provoca uma reflexão crítica sobre os limites do conhecimento científico. Considerada uma obra do século dezoito, mesmo tendo sido publicada no início do século dezenove, esse livro emerge como uma crítica à tirania da razão em detrimento da imaginação e do sentimento. O romance, que utiliza uma estrutura epistolar, mantém a estratégia da literatura gótica de propor que o que está sendo lido aconteceu realmente.

Através de uma série de cartas à sua irmã, o capitão Robert Walton descreve sua obcecada tentativa de alcançar o Pólo Norte, bem como seu encontro com Victor Frankenstein. Dentro deste cenário, dá-se o relato do jovem cientista Frankenstein, quem conta para Walton a história de como ele criou e abandonou um monstro, feito de pedaços de cadáveres. Esta criatura, ao perceber que não é aceita na sociedade, vinga-se de seu criador, que também lhe nega o direito de ter uma companheira. Frankenstein sofre as conseqüências de sua decisão, pois, além de ver sua família toda morta, ele chega morrer de exaustão no final. Walton, enfim, encontra-se com a criatura disposta a tirar a sua própria vida, porque perdera seu pai. Comovido por esta história, o capitão volta para casa, e abandona o ambicioso plano de chegar às geleiras setentrionais.

O texto surge a partir de um pesadelo da autora, em que ela vê seu bebê voltar à vida depois de morto, razão pela qual, inevitavelmente, este trabalho reflete traços biográficos de Shelley, confluindo seus fantasmas, traumas e influências. As discussões sobre o mistério da vida e as últimas descobertas sobre eletricidade, tão características da época em que foi escrito, estão também presentes no romance.

Tendo sido objeto de análises psicológicas, científicas, marxistas, de gênero e pós-colonialistas, revelando sua vocação vanguardista, Frankenstein surgiu de uma competição na casa do poeta inglês Lord Geoge Gordon Byron, em Genebra, onde ele e o casal Mary e Percy Shelley decidiram que cada um escreveria uma história de terror, inspirados em outras tramas congêneres alemãs. O principal resultado deste encontro literário foi esta obra de Mary, cujo propósito está expresso nas suas seguintes palavras — sintam, pois, o gostinho:

Eu me dediquei a pensar numa história — uma história para competir com aquelas que nos incitaram a esta tarefa [de escrever uma história de terror]. Que falasse aos misteriosos medos da nossa natureza e despertasse um horror emocionante — para fazer o leitor temer olhar em volta, coagular o sangue, e acelerar as batidas do coração. Se eu não fizesse essas coisas, minha história de terror não seria digna deste nome.

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