27.9.07

A noção de afiliação nas religiões

Se religião, ao lado do futebol, é assunto indiscutível, como se costuma ouvir por aí no Brasil, não é porque a fé e o time do coração sejam assuntos de interesse exclusivo de cada pessoa, sem necessidade alguma de serem compartilhados com outros humanos. (“Eu adoro ficar sozinho no meu quarto, curtindo a minha religião sem que ninguém me interfira nos meus próprios rituais” é uma das coisas geralmente difíceis de se escutar por parte de algum religioso, tanto quanto de algum futebolista dizer “eu sou o único torcedor existente desta grande equipe”.) Como se sabe, os fiéis, ainda que vivenciem sua espiritualidade particularmente, de maneira sui generis, só a fazem em relação com outras pessoas.

Por isso, Robert Neville, em seu livro A condição humana: um tema para religiões comparadas, não consegue pensar em condição humana nas religiões sem considerar as condições que definem o ser humano tanto individualmente quanto como pessoa em interconexão social. Afinal, a afiliação, uma das categorias vagas através da qual ele vai construir suas hipóteses comparativas, atravessa a identidade pessoal, que é definida social e individualmente. “Sob a categoria das afiliações”, explica Neville, “ficam aqueles aspectos da condição humana que devem ser entendidos primariamente como relações”, sendo que “às vezes a mais importante ‘unidade’ para a condição humana é um grupo, comunidade ou relação”. (p. 358) Com essa idéia em mente, o autor analisa as seis religiões que são objetos de estudo de toda a sua pesquisa.

Para a religião chinesa, a condição humana é primariamente associativa, afiliando-se com o cosmos por inteiro. As afiliações em termos humanos ocorrem com muitas coisas e com diferentes escalas, freqüentemente agrupadas hierarquicamente. Há um tipo de harmonia envolvido na afiliação apropriada para cada escala das coisas. Neville esclarece que “algumas dessas coisas são externas e outras, como o ego de alguém, são internas; mas todas são coisas com as quais devemos assumir algum tipo de orientação ou relação”. (p. 359) Portanto, a noção de afiliações na religião chinesa tem a ver com a idéia de que tudo é composto de e participante em harmonias, o que implica, por um lado, em aprender cada uma das afiliações de maneira correta, e, por outro, em integrar ou manter em balanço harmonioso todas as diferentes afiliações.

No caso do budismo, mesmo sabendo que um verdadeiro bodhisattva livre estará em uma harmoniosa relação com os seres humanos e a natureza, não é sua preocupação aprimorar a afiliação a alguém. A propósito, as afiliações podem ser vistas como ânsias, levando ao sofrimento, sendo, por isso, abandonáveis antes que a liberdade seja alcançada e afiliações não-escravizantes sejam possíveis.

Já o hinduísmo acredita que não há afiliações reais no nível da verdadeira e não-dual realidade, onde só há Brahma, do qual ninguém é diferente. Ora, se a diferença por si só é maya, a afiliação, como conclui Neville, também é maya. Contudo, dentro do domínio de maya, “existem as afiliações da vida diária, com a estrutura da família brâmane para a comunidade Vivekacudamani, uma estrutura política e social, e relações diversas com o ambiente natural” (p. 360). É possível ao adepto viver dentro destas afiliações, desde que não as confunda como dualistas. Essa comunidade religiosa, excludente por ser limitada aos brâmanes homens, era dedicada ao estudo, visando o discernimento e a transformação.

Para o judaísmo, a afiliação é um componente primeiro e central da identidade pessoal, que é interpretada nos termos da aliança com Deus, sendo extensiva — considerando que os israelitas têm um lugar especial neste pacto — a outros judeus dentro de Israel, aos não-judeus, ao habitat humano, e à terra prometida para ser o lugar dos judeus, conforme estipulado na aliança. O senso de obrigação como aliança é também intensamente afiliativo. A Torá possui compromissos comunitários positivos, conjugando a adoração a Deus, o participar com os outros no ritual, o interagir com os outros de modo moral e piedoso, e o estudo em comum. Esta noção comunitária é tão forte “que é quase como se Israel, mais do que os indivíduos, representasse o sujeito humano interagindo com Deus”, pois “Israel relaciona-se com Deus por intermédio de humanos cumprindo diversos papéis”. (p. 361s) Em suma, o judaísmo se constitui de atos que, conquanto individuais, se dão na relação de um para com o outro pela aliança, incluindo relações para com os não-judeus.

Os cristãos vão lançar mão desta idéia judaica de aliança, aplicando-a à igreja. Transformaram os termos do parentesco, tão comuns ao judaísmo, em outros universais, de maneira que todas as pessoas fossem irmãos e irmãs, sendo Deus o pai de todos. O cristianismo entende, pois, que todas as pessoas pertencem a uma mesma família, mas as que não fazem parte da igreja precisam ser salvas. Este impulso ao proselitismo revela o lado exclusivista que tem caracterizado a religião cristã ao longo de sua existência. Cada vez menos comum, no entanto, tem sido a afiliação com a natureza de modo apreciativo, preservando a crença de que o mundo é fundamentalmente bom, mesmo na natureza humana decaída. Afinal, a moderna representação da natureza como isenta de valoração proporcionou o individualismo cristão e, por conseguinte, uma atitude instrumental para com a natureza, mais do que uma apreciação dela como parte da boa criação divina.

O islamismo, por sua vez, compartilha com o cristianismo a convicção de que todas as pessoas são uma família, e de que a lei serve para todos. A crença islâmica na clareza do propósito divino e em sua ação na história provoca uma expressão política muito forte, não havendo, conseqüentemente, nenhuma distinção entre religião e política. “O ideal islâmico para a comunidade humana é o de que ela seja unida em um todo pelos preceitos da shari’a”, (p. 363) onde a afiliação social ideal assumisse a forma de regras ou princípios que interligam os papéis. No seu senso de afiliação com a natureza, a religião islâmica, por um lado, busca distinguir natureza e divindade, evitando a shirk — idolatria; por outro, interpreta a natureza como expressando Alá, o amr — mandamento divino.

Com isso, Neville encerra seu trabalho de comparações entre as religiões através de categorias vagas relacionadas com a condição humana. A afiliação se mostrou um tema interessante, sobretudo por desvelar o possível modo segundo o qual as pessoas se relacionam umas com as outras na religião. O senso de afiliação certamente não vai contra a singularidade de cada ser humano, já que, como está supradito, a identidade pessoal é definida tanto individual quanto socialmente. Logo, espera-se que religião, tal como um jogo de futebol, não se discuta, pelo menos enquanto não houver mais de uma pessoa junta.

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20.9.07

A língua

Certos elementos são determinantes nas relações sociais. Um deles é a língua, que é o centro da comunicação, possuindo uma dinâmica que move as civilizações, as sociedades, as tribos, as pessoas, enfim, as relações humanas.

A língua vem antes da comunicação e, por isso, carrega uma série de fatores, que se constituem como um conjunto de atitudes e sentimentos dos falantes. Estes fatores têm a ver com o ambiente cultural no qual cada pessoa está inserida. Dados como faixa etária, sexo, região e grau de escolaridade abrem um horizonte para se detectar os traços lingüísticos em uma dimensão concreta.

Existe um certo preconceito sobre a forma de falar do presidente Lula. Embora há quem diga que esse seu jeito não passe de um esforço maquiavélico para vender a imagem de alguém que fala uma língua mais popular para continuar ganhando o prestígio das massas, o atual homem mais importante do Brasil é fruto de um ambiente sociolingüístico, moldado por uma maneira de se falar bem diferente daquela que ensina o professor Pasquale. Julgar o presidente apenas pela forma que ele utiliza o português no seu discurso é corroborar a tese de que aquele pequeno órgão dentro de nossa boca possui um capital cultural muito alto. Afinal, quer presunção maior do que falar melhor que o presidente?

Em seu quinto ano de governo, dizem as “más línguas”, o líder da República já deveria ter aprendido uma língua de presidente — norma culta, é claro — ao invés de insistir em “falar errado”. No entanto, definitivamente, depois de Lula, língua nesta terra de novelas nem sempre vai ter a ver com a posição social que uma pessoa ocupa, pois o presidente não quer a língua de seu status. Prefere, antes, manter seu comportamento a partir dos ditames ou costumes assimilados na sua história de vida, em âmbito social, educacional e cultural.

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12.9.07

Teologia sincrética

A obra Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso no Brasil, do teólogo paulista Afonso Maria Ligorio Soares, aponta os caminhos para se pensar em uma teologia sincrética no território brasileiro. Seu recorte de pesquisa se concentra na principal expressão daquilo que, conquanto muito controverso, tem se pensado como sincretismo no país, a saber, a religião afro-católica.

A proposta de Soares contribui para uma leitura simpatizante das vantagens de se refletir sobre a possibilidade de uma teologia sincrética, sobretudo quando considera que a fé cristã — católica, no caso — teria muito que aprender no contato com as religiões africanas, não apenas ensinar — catequizar —, como normalmente tem sido sua “pedagogia apressada”, conforme ele constata. A propósito, ele acredita que a revelação não se detém a uma particularidade, mas se abre para o encontro com o outro.

Não é por outra razão que o autor recorre ao conceito do teólogo galego Andrés Torres Queiruga de “inreligionação”, o qual é interpretado como estando na fronteira entre o inclusivismo e o pluralismo. “Inreligionar” seria assumir o fato de que o afro-católico tem o direito de controlar as influências que recebe do catolicismo, podendo responder positiva ou negativamente aos conteúdos desta fé.

A principal vantagem de se pensar em uma teologia sincrética no Brasil resultaria, em concordância com Soares, no desencadeamento de um processo libertador no qual haveria um respeito por parte do catolicismo a uma tradição milenar, como o é a religião afro-brasileira, considerando que esta também possui uma revelação tão importante quanto a católica.

A antiga relação entre dominador — colonizador europeu cristão — e dominado — escravo africano “pagão” — também poderia ser gradualmente atenuada com o reconhecimento da autenticidade das expressões religiosas de origem africana no país, deixando de ser vistas como meros rituais estigmatizados. Isto engendraria uma nova forma de ver a religião africana, que prevalece, desde sua chegada ao Brasil, num processo de escamotagem na sua relação com o catolicismo.

Assim, teologia sincrética, para funcionar, não pode partir preferencialmente do catolicismo, correndo o risco de apenas se chegar a uma “inculturação”, mas deve considerar os traços e o modus vivendi do afro-catolicismo, que já é em si uma expressão de uma possível religião sincrética.

Todavia, uma teologia sincrética pode ser mal vista nem tanto pela sua intenção ousada em se abrir para o outro, mas muito mais pelos resultados que tal encontro pode causar. A começar pelo termo sincretismo que, infelizmente, assumiu historicamente uma conotação pejorativa. É difícil precisar sobre até que ponto esta má fama do conceito não é fruto de um preconceito cristão dominante de pré-julgar o outro a partir de seus próprios ditames. A definição particular do cristianismo fica prejudicada neste sentido, como observa Queiruga no posfácio, bem como a teologia de J. L. Segundo não é capaz de alcançar.

Soares, contudo, fora corajoso em enfrentar o assunto colocando o dedo na ferida da teologia cristã, provocando uma discussão lexical de um vocábulo que a incomoda. A inconveniência de sua proposta está justamente aqui onde há uma emergência, por parte do autor, por se abrir a tal ponto de enxergar como necessária uma reviravolta conceitual. Talvez o fato de o afro-catolicismo estar em “acontecendo”, como diz Soares, cause uma revolta entre os cristãos mais ortodoxos. Mesmo assim, isso não retira o mérito da possibilidade de se construir uma teologia sincrética no Brasil.

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