31.8.07

Dilema

Certo dia, um sobrevivente do Holocausto encontra-se com um carismático rabi, a quem pergunta: “Depois de tudo que aconteceu conosco, como você pode acreditar em Deus?”. O líder espiritual, olhando profundamente em seus olhos, responde: “E como você pode não acreditar em Deus depois de tudo que aconteceu?”.

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20.8.07

Amadis de Gaula: incerteza e beleza

O romance de cavalaria nunca mais foi o mesmo desde o surgimento de Amadis de Gaula, nascido na Península Ibérica, principal potência mundial naquele momento. Conhecida por eternas incertezas quanto à sua formação, esta obra contribuiu muito para o exercício autoral de refletir sobre literatura a partir do próprio texto literário. É, pois, um clássico que marcou o cânon da literatura mundial como um dos mais famosos textos de cavalaria, cuja leitura provocou o interesse de diversas gerações. Dizem até que, depois da Bíblia, Amadis de Gaula foi o livro mais lido em toda Europa.

Sendo a data de sua origem imprecisa, Amadis de Gaula se destaca como importante obra no período onde se difundiram bastante as novelas de cavalaria, isto é, no século XVI. No entanto, sabe-se que este trabalho, cuja autoria é atribuída, não sem alguma dúvida, a João Pires de Lobeira, existe desde, pelo menos, o século XIV.

É justamente tal problema histórico-literário, de incerteza quanto à data e ao autor, que levanta dúvidas quanto ao gentílico desta obra. Afinal, originalmente, a redação do texto está em língua portuguesa ou castelhana? O motivo deste embate reside no fato de haver argumentos para ambas as possibilidades. Por um lado, o próprio autor — provavelmente reconhecido como tal somente a partir de 1880, por ocasião da publicação do Cancioneiro de Colocci-Brancuti — é um trovador de origem galego-portuguesa, o que reforça Portugal como pátria-mãe de sua obra. Por outro lado, a divulgação desta publicação é animada pela Espanha, sendo inclusive sua primeira edição a que se tem registro, deixada a cargo do espanhol Garci Rodriguez de Montalvo, quem ordenou, emendou e atualizou o texto final, lançado em castelhano, por volta de 1508.

Todavia, não é certo que a autoria dos quatro livros completos que compõem Amadis de Gaula tenha se restringido a uma só pessoa, pois Vasco de Lobeira aparece como um possível co-autor que deu continuidade à trama iniciada por João, quem teria composto apenas os primeiros livros. Tampouco é difícil precisar se a versão espanhola estava preocupada com autoria, haja vista que era normal, por costume medieval, se omitir os autores de uma obra.

Mesmo que não se saiba qual seja o autor, é notável a qualidade da escrita deste livro. É impressionante, por exemplo, a maneira sutil com que o escritor descreve a seguinte cena — perfeição difícil de ser alcançada por autores contemporâneos, que tendem a ser mais explícitos que implícitos em se tratando de uma descrição de um episódio como o que está infracitado. Observem:

Oriana deitou-se sobre o manto de donzela, enquanto Amadis se desarmava, que bem preciso lhe era. Como a donzela fosse dormir para debaixo de umas árvores espessas, Amadis, desarmado, voltou para o pé de sua senhora. E, quando a viu assim tão formosa e em seu poder, tendo ela acedido ao seu desejo, ficou tão torvado de prazer e enleio que nem se atrevia a olhar para ela. Pode por isso dizer-se que naquela verde erva, e em cima daquele manto, mais por graça e cometimento de Oriana que por desenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa donzela do mundo. E, crendo com isso resfriar as suas ardentes chamas, ficaram, ao contrário, muito mais acrescidas, fortes e encendidas, como acontece nos sãos e verdadeiros amores.

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10.8.07

Da fé

Todos têm fé, porque fé é o ato pessoal mais íntimo e completo do espírito humano. Cabe à fé ultrapassar todas as áreas da vida, ao mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma delas. Atinge, pois, a pessoa como um todo, já que fé só pode ser um ato da pessoa inteira, não apenas de um setor particular do ser humano.

A fé, no entanto, tem dois lados: um subjetivo e um objetivo. O subjetivo é “a fé pela qual se crê”, fides qua creditur, que provém do íntimo da pessoa, sendo sua preocupação última. Já o aspecto objetivo é “a fé que é crida”, fides quae creditur, ou seja, aquilo para o qual se dirige o ato de fé, expresso em símbolos do divino, ou do sagrado. Na verdade, estamos identificando o elemento incondicional e o elemento simbólico, ambos característicos da fé.

Um exemplo disto é a palavra “Deus”. Ela é a representação simbólica do referente possível de Deus. O Deus entre aspas — símbolo — aponta para o Deus sem aspas — preocupação última de cada pessoa.

Mais do que tudo, “fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente”, como disse Paul Tillich. Afinal, embora não consigamos definir bem aquilo que nos possui de um outro jeito além da linguagem simbólica, sabemos que dentro de nós há algo que clama por eternidade, querendo atingir uma realidade sem limites, sem condições, para além desta na qual nos encontramos.

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