O mistério do plural
Quero assim crer que as pessoas não surgem a partir de uma palavra criadora, mas a partir de uma decisão especial no coração da Transcendência. Se antes a fala divina era num tom imperativo, agora ela expressa a mais bela espontaneidade. Cria através de um diálogo. (Sobre isso, dizem que o velho filósofo Sócrates já chamou a atenção para a importância do ato de dialogar, pois o parto das ideias seria por si só dialogal.) Eis que a leitura das genesíacas palavras me leva à imagem dos céus refletindo sobre aquilo que estão prestes a criar.
E o Protagonista da História torna-se também seu Autor. Escolhe um alter ego de sua imagem, antes mesmo de criar essa imagem. “Deus se decide”. É uma espécie de auto-humilhação. O Autor coloca sua imagem e sua honra naquilo que ainda não criou. E não faz isso igual ao José de Alencar em Iracema, cercando sua obra com cartas explicativas ao leitor. Não! Ele “bota a cara” e assina embaixo, doa em quem doer. Sua imagem e sua honra estão em uma História que ainda nem está no prelo. Veja que o ser humano é um ser tão complicado que cria problemas antes mesmo de ser criado.
Suspeito que somos problema para Deus há muito tempo. E creio que a nossa História tem a participação de seu próprio Autor. Quem escreveu o nosso enredo quis fazer parte da trama de cada um de nós antes mesmo de existirmos. (Sempre fui calvinista neste ponto.) É interessante que o Criador não revela sua identidade antes de criar a humanidade. Só é dada uma palavra de ordem para cada processo criativo. Ele não se identifica. Diz haja isso, haja aquilo, produza isso, produza aquilo. Na hora de nos criar, ele revela a sua identidade; o seu pseudônimo perde a utilidade. Vou chamar isso de “metatragédia”, porque o Autor faz parte da Queda também. Veja que ele sobe e desce. Está tudo lindo, de repente surge o problema.
Leio, e quero ler, de modo significativo, a primeira pessoa do plural. “Façamos”. Veja que coisa. A História da humanidade é escrita no plural, pelo seu próprio escritor. Aliás, acho que não é novidade para ninguém o fato de que a palavra hebraica “Elohim” esteja a quilômetros de distância do singular. Revelada está para mim a pluralidade divina.
Como cristão, vejo isso expressado na Trindade, “Abba” (Pai/Mãe), Filho e Espírito Santo. Aqui cabe uma pergunta para mim mesmo: Se Deus é plural, por que quero ser singular?
Marcadores: Pastoral
Ser singular só se justifica se for para ser também, e da mesma forma, com a mesma ênfase, coletivo. Certo?