Para proteger a dúvida
A reação de Bernardo se dá através de uma discussão sobre ficção e realidade, mostrando que desde Dom Quixote, criado por Cervantes no fim da Idade Média — época histórica onde se praticou o crime da queima de livros e de idéias para silenciar ameaças aos ditames da igreja cristã —, a ficção é classificada como loucura por ser algo fora da realidade. Segundo o autor, o padrão para se qualificar uma obra literária não deve ser a semelhança com a realidade física, mas a dessemelhança.
A afirmação de que “a ficção não copia a realidade, mas a representa” abre caminho para as duas teses centrais do artigo: “[1] a ficção é boa se e somente se não tem tudo a ver com a realidade; [2] a ficção é boa se e somente se não tem tudo a ver com o leitor.” Primeiro, Bernardo acredita que a ficção é mais honesta do que a não-ficção, porque a ficção “desrealiza o real para criar um novo real mais seguro”, trazendo, ao contrário do real, mais certezas do que dúvidas. “Ela se disfarça, mas avisa que está se disfarçando”.
Para explicar o seu segundo argumento, Bernardo recorre ao conceito de catarse, mostrando o que está por trás da relação entre leitor e personagem. Ele inverte os papéis, quando constata que o “o leitor não se identifica propriamente com o personagem, mas o personagem é que oferece ao leitor uma identidade”. Isto resulta em uma experiência estética, onde o leitor assume, no decorrer da leitura, uma nova identidade.
Aqui a literatura é qualificada através de uma perspectiva oposta à ideia difundida no senso comum de que a ficção está fora da realidade. O fato é que a ficção é um espelho da realidade. Por isso, se o ser humano precisa inventar — sonhar, fantasiar —, é porque necessita de algo, digamos, além do aparente, já que seu caráter ontológico se engendra por meio do conflito de ser — real — e não ser — ficção.
Por que não dizer, portanto, que a ficção constitui um patrimônio do inconsciente coletivo da humanidade, à medida que produz e reproduz imagens e arquétipos os quais denunciam o ser humano em todas as suas dimensões? Ela, por certo, não se prende ao aparente, mas acessa quaisquer mundos necessários para se compor. Assim, o papel do leitor é continuar suspeitando da realidade, imaginando uma outra realidade, ao contrário de buscar o real sentido de um texto (será que ele existe?). Isto sim é “saber proteger a dúvida”.
Marcadores: Literatura
Perfeita conclusão:
Por que não dizer, portanto, que a ficção constitui um patrimônio do inconsciente coletivo da humanidade, à medida que produz e reproduz imagens e arquétipos os quais denunciam o ser humano em todas as suas dimensões? Ela, por certo, não se prende ao aparente, mas acessa quaisquer mundos necessários para se compor.
Adorei a leitura, mas estou sem palavras.
Um beijo, Fanuel