21.12.06

Natal barroco: a falta de teogonia do personagem José de Drummond

Quem me conhece sabe que nasci na terra dos minerais, mais especificamente, em Itabira — isso mesmo, aquela da "fotografia na parede" —, terra natal de Carlos Drummond de Andrade. Considerado homem das letras modernistas, este poeta é também filho de uma cultura marcada pela arte barroca. Minas Gerais talvez seja o estado mais contraditório do país por carregar tanto o forte senso religioso de reverência profunda a Deus quanto um reconhecimento da impossibilidade humana diante da divindade. Ou seja, transcendente e imanente costumam conviver juntos no imaginário coletivo mineiro. De fato, o barroco se caracteriza por uma certa tensão entre o moderno e o tradicional, ou, o que é o mesmo, a religiosidade tem característica humana. Não é à toa que a arte barroca trabalha com movimento, mostrando que o transcendente está próximo do ser humano, pois o envolve. José Guilherme Melquior diz que "caberia ao barroco submeter as antíteses e ambigüidades do maneirismo [estilo marcado por idéias e formas heterogêneas e conflitantes] a uma síntese unificadora, que, sem negar os conflitos, e até mesmo salientando-os, subordina-os, não obstante, a novos princípios ordenadores." Portanto, tentar fundir idéias tão opostas vai ser uma das principais preocupações da arte barroca cuja influência dar-se-á no modus vivendi da cultura mineira, seu mais importante nascedouro.

Não há lugar melhor para enxergar quem realmente Drummond é senão em seus próprios poemas. Ali, sim, se encontram as reminiscências de alguém quem descende de povoadores, mineradores e fazendeiros da barroca Gerais. Um peregrino nato, Drummond escreveu "José", uma poesia que muito possui do seu estilo que Alfredo Bosi chama de "atividade lúdica da razão, solta, entregue a si mesma, armando e desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir." Esse niilismo se observa na tragédia de José, personagem principal, tão visível, mas tão oculto ao mesmo tempo. José é desafiado o tempo todo com a pergunta retórica "e agora, José?". Não há mineiro que não se identifique com esse tal de José. Esse camarada que é alguma coisa que não significa nada — "sem nome" —, quem vive o fatalismo de ver tudo acabar, amargando o fardo de uma "incoerência". Tudo o que ele quer fazer para resolver seu problema não pode fazer — "abrir a porta", "morrer no mar", "ir para Minas". Vive de "se", mas é "duro" demais para gritar, gemer, tocar a valsa vienense, dormir, cansar ou até mesmo morrer. O mineiro é o José "sozinho no escuro, qual bicho do mato", sem lugar algum "para se recostar". Resta-lhe marchar, mas "para onde?". Essa descrição de José traz um detalhe no seu final: "sem teogonia". Aqui eu interpreto como uma falta de segurança na vida de José. Ele não possui uma religião que explique o nascimento de seu Deus de maneira unicamente divina, que não dependesse do ser humano, como é o caso das religiões politeístas. Essa referência nas entrelinhas do nascimento de Jesus pode revelar um ranço barroco de ver sua divindade a partir das características humanas. Aí que está o problema: mesmo sendo humano, ele é Deus. Essa clássica aporia do cristianismo faz com que o sofrimento de José seja visto de forma não desesperadora, já que é possível ao ser humano comportar Deus, quanto mais os infortúnios da vida. O próprio Jesus encarnou o sofrimento na cruz, mostrando que não há motivos para desespero quando tudo é suportável.

O Natal barroco aponta para o sofrimento do Calvário. Talvez por isso que o mineiro costuma transformar seus momentos de alegria em briga. Sempre tem alguém chorando quando estamos todos reunidos em família. Parece que quando se assenta para se festejar a vida no dia 25 vem à tona toda nostalgia triste do José. Mas não há problema em entristecer porque o sofrimento é suportável, portanto ninguém vai se desesperar. Ah, se tivéssemos teogonia para explicar o nascimento de nosso Deus de maneira divina! Certamente o Natal mineiro seria outro. Não! Desse jeito seríamos outra coisa diferente do José barroco.

Esse cidadão é obrigado a fundir idéias tão opostas em si, conservando a tentativa de fazer uma síntese do conflito. Daí que nasce a incoerência do muito ouro que das minas saiu — e ainda sai —, mas que muito pouco fica para a sobrevivência de seu povo. O barroco não deixa de ser político também. É uma espécie de um cala-boca religioso. Temos de sofrer mesmo porque até Deus sofreu. Ora, sofremos para sustentar os grandes. O que explica o fato de termos tantas riquezas minerais sendo extraídas de nosso solo enquanto não vemos o desenvolvimento do estado que amarga posições tímidas no cenário nacional? Somos a escória do Sudeste brasileiro, sendo apenas curral eleitoral para salafrários de quinta categoria. Nosso povo se mantém atrasado pela falta de educação de nível superior proporcional ao tamanho gigantesco de nossa Minas Gerais. Já fomos o berço da intelectualidade do país na época dos inconfidentes, mas fomos silenciados. Culpa do barroco? Da falta de teogonia? Sei lá! Hoje somos José demais para saber.

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18.12.06

Um pedaço de William Wordsworth (1770-1850): tentei traduzir o que jamais se poderá traduzir

Uma presença que me perturba com a alegria,
De elevados pensamentos; um senso sublime
De algo mui profundamente interfundido,
Cujo lar é a luz dos pores-do-sol,
E o redondo oceano e o vivente ar,
E o céu azul, e na mente do homem.

A presence that disturbs me with the joy,
Of elevated thoughts; a sense sublime
Of something far more deeply interfused,
Whose dwelling is the light of setting suns,
And the round ocean and the living air,
And the blue sky, and in the mind of man.


(Tintern Abbey: linhas 94-9)


O tradutor é um traidor, já dizia um ditado que dizem ser da Itália (traduttore, traditore). Aqui não quero fazer as vezes de ninguém senão a de alguém que recebera o impacto de um pedaço de um dos grandes poetas do Romantismo inglês. Sim, um pedaço dele, William Wordsworth, aquele quem insistia que a linguagem da poesia deveria ser a linguagem dos homens e mulheres comuns, encontrada no discurso de camponeses — rural people. Aliás, eu só pude me intrometer a passar para o português estes versos por ele ter sido contra a tal da dicção poética — "poetic diction". Chamo de pedaço não apenas por ser uma parte de toda sua poesia, mas pelo fato de Wordsworth acreditar que o poeta era um profeta, o qual tinha a tremenda responsabilidade de esconder os mistérios do coração e da vida. É isso: nosso poeta escondera os outros pedaços do mistério e nos revelara apenas uma parte daquilo que cabe a qualquer outro mortal tentar descobrir. Ele vai além e crê que o poeta é aquele que dá significado à vida, não um mero embelezador dela, como muitos supõem. Por esta razão, os românticos transformaram a poesia em uma vocação, deixando de ser um simples hobby. Nunca poderei traduzir o mistério para o qual Wordsworth dera significado, porque ele fora o único a encontrar o que quiçá nenhum de nós seria capaz de encontrar. Ah, vale citar a interpretação de Anthony Burgess deste trecho: "homem e natureza se tornam fundidos através da participação no único ‘ser poderoso’ [mighty being], de modo que o mais elementar dos objetos naturais se torne ‘humanizado’". Chamem-no de panteísta, mas assumam que a tradução do intraduzível mistério dialético Deus-Natureza não foi feita de maneira tão traduzível quanto o fora por este poeta-profeta.

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