Natal barroco: a falta de teogonia do personagem José de Drummond
Quem me conhece sabe que nasci na terra dos minerais, mais especificamente, em Itabira — isso mesmo, aquela da "fotografia na parede" —, terra natal de Carlos Drummond de Andrade. Considerado homem das letras modernistas, este poeta é também filho de uma cultura marcada pela arte barroca. Minas Gerais talvez seja o estado mais contraditório do país por carregar tanto o forte senso religioso de reverência profunda a Deus quanto um reconhecimento da impossibilidade humana diante da divindade. Ou seja, transcendente e imanente costumam conviver juntos no imaginário coletivo mineiro. De fato, o barroco se caracteriza por uma certa tensão entre o moderno e o tradicional, ou, o que é o mesmo, a religiosidade tem característica humana. Não é à toa que a arte barroca trabalha com movimento, mostrando que o transcendente está próximo do ser humano, pois o envolve. José Guilherme Melquior diz que "caberia ao barroco submeter as antíteses e ambigüidades do maneirismo [estilo marcado por idéias e formas heterogêneas e conflitantes] a uma síntese unificadora, que, sem negar os conflitos, e até mesmo salientando-os, subordina-os, não obstante, a novos princípios ordenadores." Portanto, tentar fundir idéias tão opostas vai ser uma das principais preocupações da arte barroca cuja influência dar-se-á no modus vivendi da cultura mineira, seu mais importante nascedouro.
Não há lugar melhor para enxergar quem realmente Drummond é senão em seus próprios poemas. Ali, sim, se encontram as reminiscências de alguém quem descende de povoadores, mineradores e fazendeiros da barroca Gerais. Um peregrino nato, Drummond escreveu "José", uma poesia que muito possui do seu estilo que Alfredo Bosi chama de "atividade lúdica da razão, solta, entregue a si mesma, armando e desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir." Esse niilismo se observa na tragédia de José, personagem principal, tão visível, mas tão oculto ao mesmo tempo. José é desafiado o tempo todo com a pergunta retórica "e agora, José?". Não há mineiro que não se identifique com esse tal de José. Esse camarada que é alguma coisa que não significa nada — "sem nome" —, quem vive o fatalismo de ver tudo acabar, amargando o fardo de uma "incoerência". Tudo o que ele quer fazer para resolver seu problema não pode fazer — "abrir a porta", "morrer no mar", "ir para Minas". Vive de "se", mas é "duro" demais para gritar, gemer, tocar a valsa vienense, dormir, cansar ou até mesmo morrer. O mineiro é o José "sozinho no escuro, qual bicho do mato", sem lugar algum "para se recostar". Resta-lhe marchar, mas "para onde?". Essa descrição de José traz um detalhe no seu final: "sem teogonia". Aqui eu interpreto como uma falta de segurança na vida de José. Ele não possui uma religião que explique o nascimento de seu Deus de maneira unicamente divina, que não dependesse do ser humano, como é o caso das religiões politeístas. Essa referência nas entrelinhas do nascimento de Jesus pode revelar um ranço barroco de ver sua divindade a partir das características humanas. Aí que está o problema: mesmo sendo humano, ele é Deus. Essa clássica aporia do cristianismo faz com que o sofrimento de José seja visto de forma não desesperadora, já que é possível ao ser humano comportar Deus, quanto mais os infortúnios da vida. O próprio Jesus encarnou o sofrimento na cruz, mostrando que não há motivos para desespero quando tudo é suportável.
O Natal barroco aponta para o sofrimento do Calvário. Talvez por isso que o mineiro costuma transformar seus momentos de alegria em briga. Sempre tem alguém chorando quando estamos todos reunidos em família. Parece que quando se assenta para se festejar a vida no dia 25 vem à tona toda nostalgia triste do José. Mas não há problema em entristecer porque o sofrimento é suportável, portanto ninguém vai se desesperar. Ah, se tivéssemos teogonia para explicar o nascimento de nosso Deus de maneira divina! Certamente o Natal mineiro seria outro. Não! Desse jeito seríamos outra coisa diferente do José barroco.
Esse cidadão é obrigado a fundir idéias tão opostas em si, conservando a tentativa de fazer uma síntese do conflito. Daí que nasce a incoerência do muito ouro que das minas saiu — e ainda sai —, mas que muito pouco fica para a sobrevivência de seu povo. O barroco não deixa de ser político também. É uma espécie de um cala-boca religioso. Temos de sofrer mesmo porque até Deus sofreu. Ora, sofremos para sustentar os grandes. O que explica o fato de termos tantas riquezas minerais sendo extraídas de nosso solo enquanto não vemos o desenvolvimento do estado que amarga posições tímidas no cenário nacional? Somos a escória do Sudeste brasileiro, sendo apenas curral eleitoral para salafrários de quinta categoria. Nosso povo se mantém atrasado pela falta de educação de nível superior proporcional ao tamanho gigantesco de nossa Minas Gerais. Já fomos o berço da intelectualidade do país na época dos inconfidentes, mas fomos silenciados. Culpa do barroco? Da falta de teogonia? Sei lá! Hoje somos José demais para saber.
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