24.10.08

(*) Inspirado no Sermão do Bom Ladrão, de Padre António Vieira, que está disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000025pdf.pdf

IV

Mas diante da cruz a nossa postura se diferencia. E é a respeito disto que quero chamar a sua atenção. Os dois ladrões têm voz diante da cruz, porque ali ninguém está sendo discriminado. Já tem um ditado que diz “O que o berço dá só a tumba tira”. Porque a morte não exclui ninguém, nem rico nem pobre, nem católico nem protestante, todos vamos partir um dia. Não adianta querer levar coisas para a morte, pois lá estaremos de mãos vazias. Como disse Jesus: Nolite thesaurizare vobis thesauros in terra ubi erugo et tinea demolitur ubi fures effodiunt et furantur. “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem”. (Mt 6,19)

A fala do primeiro ladrão, no entanto, mostra que diante da morte, ainda podemos vir a nos tornar orgulhosos e preocupados com nossos próprios interesses. Si tu es Christus salvum fac temet ipsum et nos. Eis a fala provocante de um dos malfeitores. Aquele homem ao lado de Jesus ainda está preso a seus próprios interesses. Quer ele culpar Deus pela situação na qual se encontra. Veja que ele usa o termo “Cristo” para se dirigir a Jesus. Usando um título religioso para o Mestre, quer apenas pregar um rótulo em Deus.

Como nos parecemos com este ladrão! Os conceitos religiosos que usamos para falar de Deus demonstram familiaridade com a religião, mas dizem muito pouco sobre a fé simples que nutrimos no dia-a-dia. Aquele homem sabia o título mais nobre de Jesus, “Cristo”, que significa o Messias, o Ungido, Aquele que seria o Rei de Israel. Muita gente tem vários nomes para Deus, mas pouco Deus para um nome. Aquele homem quer apenas se livrar de seu sofrimento. E como nós somos assim! Queremos que Deus resolva logo o nosso problema. E se ele não fizer nada, a gente fica indignada.

E eu já ouvi muitos testemunhos onde as pessoas dizem: “Deus, se o senhor é Deus mesmo, resolve este meu problema.” Como somos egoístas! Como queremos que Deus seja o nosso capacho, que ele aja sobrenaturalmente e realize milagres para resolver nossos problemas de saúde, de emprego, et cetera. Não percebemos que ele está aqui conosco, sendo crucificado ao nosso lado. Ele pode não descer da cruz, mas estará lá, morrendo conosco.

Se você adoecer, ele pode não curá-lo, mas estará adoecendo, deitando-se no leito ao seu lado. Se você ficar desempregado, ele pode não conceder o emprego que você tanto deseja, mas estará indo com você quando estiver na agência de trabalho deixando o seu currículo. Se você chorar, ele estará chorando com você. E mesmo que seu sofrimento acabe numa cruz, ele estará sendo crucificado, como foi ao lado daqueles maus ladrões.

É por isso que Jesus não repreende o ladrão que diz estas palavras, que, para nós, soam ofensivas. Jesus simplesmente não está lhe dizendo nada. Ele se cala. Jesus também experimentou o silêncio de Deus, rogando no Getsêmane três vezes: Mi Pater si possibile est transeat a me calix iste verumtamen non sicut ego volo sed sicut tu. “Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres”. (Mt 26,39) O Filho, então, nada ouve do Pai.

Muitas vezes, queremos ouvir uma resposta de Deus no sofrimento e Deus se cala. Ele não fala nada. Quando ele está se calando, estamos sendo convidados a aprender a depender dele. Não há segurança alguma. Não estamos com ele só porque disse alguma coisa, estamos com ele porque nele confiamos. Confiança é esperança, e esperança é o melhor presente que Deus dá para o ser humano. É crer em coisas não vistas, é crer que há algo melhor nos esperando. Quando Deus se cala, nós somos convidados a ter esperança.

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16.10.08

Sermão do Mau Ladrão (*) — continuação

(*) Inspirado no Sermão do Bom Ladrão, de Padre António Vieira, que está disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000025pdf.pdf

III

Para que uma verdade tão grave vá assentada sobre fundamentos sólidos bíblicos, sugiro que toda a justiça que julgamos haver no mundo seja vista como impossível. Assim aprendemos de Coélet, o Pregador, cuja sabedoria o identifica com o rei Salomão. Non est enim homo iustus in terra qui faciat bonum et non peccet. “Não existe um homem tão justo sobre a terra que faça o bem sem jamais pecar”. (Ecl 7,20) Ora, se não há um que seja justo o suficiente, ninguém é melhor que ninguém. Todos, homens e mulheres, somos como Adão, condenados à tentação de roubar, de pegar aquilo que não é nosso. Deus coloca querubins vigiando o jardim do Éden, porque assim como Adão roubou da árvore do conhecimento, ele poderia roubar também da árvore da vida. (Gn 3,24) E é justamente isto que fazemos hoje, tentamos encontrar a tal árvore da vida, onde podemos descobrir as respostas para todas as nossas perguntas, o antídoto para todos os nossos males, a cura para todas as nossas doenças, a solução para todos os nossos problemas. Não percebemos que fazendo isto, estamos repetindo o ato adâmico de ter em mãos algo que só a Deus pertence, a vida em abundância.

Por isso, olhar para aquelas duas pessoas ali, ao lado da cruz de Jesus, é olhar para nós mesmos. Não há imagem melhor para descrever a humanidade: um bando de ladrões. Mas uma coisa não podemos perder de vista: Jesus está sendo crucificado no meio de ladrões. Ele identificou-se perfeitamente com os homens. Por que fez isso? Porque Jesus é “Deus conosco”. Diante dele, que unindo toda a humanidade, e nivelando a todos nós, não há quem seja melhor que ninguém. Todos estamos na condição de maus ladrões, dependentes eternamente de sua Graça e misericórdia. Não é possível a máscara religiosa da moral, porque nós ficamos nus na cruz, já que ele se fez nu. Não importa o que fiz de certo ou de errado. Todos acabaremos crucificados ao lado dele, porque é essa a nossa condição, a de ladrões.

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8.10.08

Sermão do Mau Ladrão (*) — continuação

(*) Inspirado no Sermão do Bom Ladrão, de Padre António Vieira. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000025pdf.pdf

II

Omnes enim peccaverunt et egent gloriam Dei. “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus.” (Rm 3,23) Entre os santos apóstolos, São Paulo é sempre citado para se falar de pecado, porque foi ele o maior de todos os teólogos bíblicos devido à sua condição prévia de perseguidor dos seguidores de Jesus. Perseguindo, não seguiu; seguindo, foi perseguido. Ele não fugiu de sua condição de mau ladrão. Vejam agora que não são poucas as vezes que aqueles que se pretendem cristãos transformam a missão da fé em se tornar guardiões da moral, perseguindo os seguidores. São Pedro insistiu três vezes que não trairia, mas traiu. São Paulo traiu sem insistir que não trairia. Qual a diferença do pecador moralista para o outro pecador? Nenhuma, exceto que o mesmo moralista engana-se a si mesmo, fugindo de pronunciar aquelas malditas palavras: Salvum fac temet ipsum et nos. “Salva-te a ti mesmo e a nós.” Com isso, perseguem, e não seguem.

Se há espaço para alguma moral, ela ocorre depois, não antes. Mesmo assim, nunca se nega a condição de mau ladrão. Neque tu times Deum quod in eadem damnatione es. “Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação?” (Lc 23,40) Estas palavras do famigerado “bom ladrão” revelam que ele não fugia da condição de mau e não advogou em favor da condição de bom. Hoje o chamamos de “bom ladrão”, porém ele não conviveu com isso, sendo durante toda a vida um mau ladrão tanto como o seu companheiro.

Quer a religião levar as pessoas à condição de bons ladrões antes do reconhecimento de sua condição de maus ladrões. As palavras que padres e pastores deveriam ouvir são essas: “Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação?” Condenados estão também os párocos, não apenas os fiéis. Por que não pregam esta doutrina para si mesmos ao invés de pregarem a terceiros como fazem moralisticamente? Porque buscam se aproximar do lugar que é só do Salvador. A ele cabe dizer: Hodie mecum eris in Paradiso. “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Os pregadores da moral não são capazes de levar nem a si mesmos ao Paraíso, quanto mais enganar o povo com a ilusão do “bom ladrão”.

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2.10.08

Sermão do Mau Ladrão (*)

(*) Inspirado no Sermão do Bom Ladrão, de Padre António Vieira. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000025pdf.pdf

Si tu es Christus salvum fac temet ipsum et nos. (Lc 23,39)

I

Este sermão, que se prega nos chamados tempos pós-modernos, e não nos tempos modernos ou pré-modernos, está interessado em um tema de todos os tempos, mas que, por ser de todos os tempos, não pertence a tempo algum. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão não fala de uma característica que é só daquele tempo ou deste tempo, mas que sempre existiu e sempre existirá na história da humanidade. O texto descreve os dois crucificados ao lado da cruz de Jesus como “malfeitores”, como aqueles que cometeram crimes ou delitos condenáveis. Sabemos com todas as letras que eles são criminosos. Alguma coisa fizeram para estar ali na cruz. Durante parte de sua vida, estiveram dedicados à maldita arte de pegar o que não lhes pertencia. Isto é algo apenas dos tempos de Jesus e dos nossos tempos? Não. Porque a atitude desses homens lembra a atitude do primeiro dos homens, Adão. O Senhor Deus disse a Adão: “De toda árvore do jardim podes comer livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás.” (Gn 2,16s) Aquele fruto da árvore do conhecimento era a única coisa que não pertencia a Adão no Éden. E ele foi querer justamente experimentar daquilo que não era seu. Ele roubou da árvore que não lhe pertencia. Qual foi a conseqüência deste roubo? Ele foi expulso do Paraíso. Pagou um preço alto por isso. Adão saiu do Jardim, porque a raça humana, através de sua atitude, provou não ser digna de confiança e predisposta ao mal. Deus tirou Adão do lugar onde furtou para que ele e nós, seus descendentes, não roubássemos novamente daquela árvore que a ninguém pertence senão ao Criador. Qualis terrenus tales et terreni et qualis caelestis tales et caelestes. “Como foi o primeiro homem terreno, tais são também os demais homens terrenos”. (1 Co 15,48) Ou seja, nós somos tão ladrões como Adão, o nosso primeiro pai, foi ladrão. Se Adão roubou, todos nós roubaríamos naquele tempo, roubamos neste tempo, e roubaremos no tempo futuro.

Si tu es Christus salvum fac temet ipsum et nos. Quem está ali a dirigir essas palavras a Jesus? Não somos nós, aqueles que uma vez roubaram, hoje roubam e sempre roubarão no porvir? Esta é a lembrança que devem ter todas as pessoas de todos os tempos, sejam quais forem. Que se lembrem da sua condição de maus ladrões. Este é o assunto a respeito do qual hei de pregar. Peçamos a Graça.

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[Continua]

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